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terça-feira, 6 de março de 2012

Maternidade, Inferno e Sétima Arte – 2ª parte


Sim, eu prometi um francês, mas resolvi guardá-lo para amanhã. Apresento hoje um longa canadense vencedor de 25 prêmios em festivais internacionais.


Em Eu matei minha mãe (J'ai tué ma mère), de 2009, o adolescente Hubert (Xavier Dolan) é o filho de Chantale (Anne Dorval) no primeiro longa roteirizado, produzido, dirigido e estrelado pelo prodígio Dolan, que declarou tratar-se de uma obra semi-autobiográfica.
 
Há pouco eu falava ao telefone com minha mãe (é sério, não é piada) sobre o quanto acredito que, a partir de um determinado momento na vida, qualquer interferência maternal deixa de ser uma solução para tornar-se um problema. Na defesa de meu argumento, tentei explicar a ela que esta minha leitura não tem relação com o compromisso implícito que filhos detêm com pais para a velhice deles, já que, claro, este foi o primeiro entendimento dela. Nesse sentido, creio que nem caiba qualquer “porém”.

O fato é que sou facilmente seduzida pela ideia de culpar tacitamente as mães por certo retardo no amadurecimento das pessoas. Homens e mulheres, fique claro. Mais homens que mulheres, pelo que tenho visto. Mas não há regra. Independentemente, vejam, de estarem as pobres matronas cobertas das melhores intenções. 

E por favor, eu tenho coração. Não ignoro o poder e a relevância do amor materno, tampouco o vazio na vida daqueles que foram dele privados. Em última instância e na iminência da morte, por exemplo, é por ela que chamamos. Ou seja, não é sobre isso que escrevo e, sim, minha mãe vai muito bem, obrigada!

Nada disso invalida, contudo, a impressão que tenho por hora de que todos atingem um estágio na vida em que aquelas mães que se dedicam intensamente a resolver problemas dos seus rebentos (muitas vezes como um mecanismo de fuga à frustração de suas próprias vidas), desde os mais banais, como comprar cuecas, aos mais elaborados, como provê-los amplamente, tendem a fazer muito mais mal do que bem aos ex-pimpolhos, permitindo que protelem o desenvolvimento de sua capacidade e autonomia para tomar decisões, planejar, descobrir o real valor das coisas e as diretas consequências de suas ações.

Tenho outra impressão, ainda, a de que a cada geração esta postura tem se acentuado. Mecanismos de compensação para as ausências motivadas pelo trabalho ou para separações, por exemplo, resultam em adolescentes superficiais, consumistas e carentes. E aqui, quem realmente entende de comportamento humano e de adolescentes dirá que estou generalizando. E estou mesmo, e sei bem que a conduta e o caráter das pessoas não são simplesmente “condicionáveis”.

O inferno ao qual eu me refiro neste drama é construído pelo olhar do protagonista, detendor do ponto de vista segundo o qual Chantale vai sendo desenhada. Viver com sua mãe lhe é insuportável. Sem ela, entretanto, aparentemente impossível. Na direção contrária, para Chantale, dar conta da plenitude de insatisfações do inteligente e provocador Hubert é tarefa inglória, abrir mão de sua maternidade, impensável.

Entendo que o pacto de expectativas que se firma na relação mãe e filhos está, invariavelmente, fadado a frustrações. Em alguns casos maiores que em outros. Algumas vezes, melhor trabalhadas e compreendidas que em outros. Fato é que não se pode avaliar o currículo antes do parto. Nem de quem nasce e nem de quem traz à luz. E, ainda que isso fosse possível, seria apenas uma forma de criar mais expectativas - e arriscar mais frustrações. Somos sujeitos ao erro principalmente naqueles momentos em que sequer nos damos conta de que poderíamos errar.

Chantale é um doloroso exemplo disso. É dela, no limite, a culpa pela ausência do pai de Hubert. É ela quem resta estacionada (e incapaz de compreendê-lo) atravancando seu caminho. Mas, é ela quem o salva. E ele, transgressor, sensível, inteligente, inquieto, imaturo, esbraveja sua angústia. Filho “aborrecente”, ele julga absolutamente insuportáveis os gestos, gostos, modos, colocações da mãe. E é ele quem conduz a negação de sua existência, mediante um julgamento ora cruel, ora risível, segundo o qual tudo o que orbita o universo de sua mãe é kitsch, desnecessário, excessivo, superficial, declinável. Assim ele a nega – e a mata.

Assim, ele prefere a professora e o namorado. Como diria minha mãe, "os de fora". 

As tensões entre amor e ódio, rejeição e projeção, repulsa e desejo estão aqui novamente, desdobradas, diluídas, constantes.

Para completar, importante ressaltar a felicidade de Dolan na construção da atmosfera sufocante em que o jovem Hubert se encontra. As cenas em câmera lenta, bem como os sonhos e delírios do garoto dão um tom a um tempo denso, triste e delicado ao seu ponto de vista sobre a vida e o mundo que o cerca.

Ah... e há as cores... Mais uma vez, como no caso de Precisamos falar sobre Kevin, nota-se um trabalho minucioso na composição das cores a cada cena. No caso específico da “cafonice” de Chantale, por exemplo, até o revestimento do sofá e o lustre do apartamento transbordam significado.

Trata-se aqui de um capricho adolescente, do drama de uma mãe incompreendida, de um retrato da crueldade a que estamos fadados todos na contemporaneidade (dado o poço sem fundo de nossas vontades), de nada disso, de qualquer outra coisa? Fosse simples assim responder, que graça teria?


Em tempo, o cinema nos presenteia há muito com matéria muito fértil para quem se interessa pelas tensões e problemas resultantes da ambiguidade da relação mãe e filho. Obras como  La Luna (La Luna, Ita/Usa, 1979), de Bernardo Bertolucci e Mãe e Filho (Mat i syn, Rus, 1997), de Alexander Sokúrov, são apenas dois belos exemplos destas tensões que enveredam por trilhas incestuosas.

AMANHÃ, O FRANCÊS QUE ENCERRA ESTA SÉRIE.

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