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quinta-feira, 8 de março de 2012

Em que Paris está a sua meia-noite?

Ah, eu poderia aproveitar o ensejo e, tendo em vista a data, escrever sobre as mulheres. Mas elas, enquanto gênero e nas suas especificidades, muito embora tenham povoado minha pesquisa de doutoramento defendida mais dois anos atrás, francamente não são algo que eu deseje por hora em meus pensamentos. Ando um tanto enjoada, inclusive, de pensar na forma como o fato de ser mulher determina a condução do meu próprio caminho. Bah. Um feliz dia para as mocinhas, de todo modo. Hoje e sempre que possível.

Desejo pensar sobre sonhos, projetos, metas, que todos os temos e cremos persegui-los. Sejam sonhos singelos ou projetos megalômanos, penso que a dinâmica de uma vida saudável e produtiva depende muito da manutenção, não dos sonhos em si, mas do nosso movimento cotidiano na direção deles. E, que interessante, existem muitas diferentes dimensões para sonhar, desde aqueles inalcançáveis projetos que servem apenas como inspiração, até o planejamento que permite a aquisição de bens, a regularização de uma situação, a oficialização de um relacionamento. Cada um sonha conforme pode e o quanto aguenta, afinal.


O texto que recomendo abaixo foi escrito pelo psicanalista Contardo Calligaris, uma leitura que eu persigo, muito embora me agrade algumas vezes mais do que em outras, por ocasião do lançamento do último longa de Woody Allen, Meia-Noite em Paris (Midnight in Paris, Es/Eua, 2011). Filme que, aliás, tive o prazer de assistir numa das minhas salas de cinema favoritas (Cine Livraria Cultura, o antigo Bom Bril), e na companhia de algumas das pessoas que mais tem me permitido sonhar ao longo da vida. Pelo menos, aquela sorte de sonhos que me permitem compor uma persona muito próxima do meu ideal.

Nele, Calligaris usa como ponto para reflexão as inquietações do protagonista, escritor frustado e "vendido" para o sistema, que deseja escrever alta literatura e finalmente se vê diante da possibilidade de ter seu projeto lido por grandes referências de sua biblioteca. Esta divertida pegada surreal faz do longa uma viagem deliciosa pelos delírios de qualquer leitor, escritor ou amante da literatura. Poder sentar num bistrô com seus "mestres" e trocar figurinhas com pessoas de fato interessadas no que você tem a dizer... que sonho! (perdão pelo trocadilho infame). O que Calligaris faz, entretanto, é partir desta bela imagem para nos levar a pensarmos sobre uma tentação muito grande - da qual sou vítima confessa - a de abrir mão de nossos sonhos em nome de uma temor mascarado de falhar.
Algum tempo atrás, ouvi de um grande amigo - em muitos sentidos, um "mestre" - que, para a obtenção do sucesso profissional, a diferença entre uma e outra pessoa sobre as quais falávamos,  não estaria no talento (ou sensibilidade, vocação, brilhantismo, wathever) e sim na disciplina, que ele cunhou como "pé-de-boisismo". Tenho absoluta certeza de que, no mundo em que vivemos, ele está coberto de razão. Ainda assim, meu coração taurino continua convencido de que talento é um bem inato, enquanto disciplina se adquire, tal qual músculos definidos na academia. E isso depende muito da equação que direciona os anseios para a obtenção de metas - coisa dos disciplinados, ou para o vislumbramento do sonho, coisa de boa parte dos talentosos (ou não) e dos frustrados.

A maturidade traz o demérito da consciência de estarmos sendo constantemente julgados, avaliados, rotulados, inclusive, pelas pessoas mais próximas, que até nos amam. Para o sonhador, isso não é nada bom. Não enquadrar-se num PERFIL, não atender às expectativas do meio quando se é bem jovem já não é a forma mais serena de viver. Se disso depende o pagamento de suas contas então, muito pior.

O fato é que em alguns momentos, a autocrítica e o medo do julgamento embotam os sonhos. Da mesma maneira que nos é dada liberdade para sonhar, temos a liberdade de escolher em qual direção seguir: na construção de projetos ou numa rotina de sonhos embalada por quem poderíamos ter sido se "isso ou aquilo". E tornar-se amargo é algo que ninguém quer. Daí a necessidade de se perguntar algumas vezes na vida em que Paris fica a sua meia-noite. Em que esquina escura é preciso esperar para que seja possível viver mais em acordo com os próprios projetos.

Enfim, não pretendo concluir nada. Este longo preâmbulo, antes de se tornar brega e chato, vem apenas para introduzir o texto:


É FÁCIL DESISTIR DOS SONHOS - CONTARDO CALLIGARIS

Folha de São Paulo, Ilustrada, 07 de julho de 2011

GIL PENDER, o protagonista do último filme de Woody Allen, "Meia-Noite em Paris", quer deixar de escrever roteiros de sucesso (que ele mesmo acha medíocres) para se dedicar a coisas "mais sérias" e menos lucrativas: um romance, por exemplo. Ele acumulou dinheiro suficiente para tentar essa aventura por um tempo, em Paris, como um escritor americano dos anos 1920.

Infelizmente, Pender está prestes a se casar com uma noiva que aprecia muito seu sucesso atual, mas não tem gosto algum pela incerteza (financeira) de seu sonho. Tudo indica que ele se dobrará às expectativas da noiva, dos futuros sogros e do mundo, renunciando a seu desejo. Talvez seja por causa dessa renúncia, aliás, que noiva e sogros o desprezam (todo o mundo acaba desprezando o desejo de quem despreza seu próprio desejo).

Mas eis que, na noite parisiense, alguns fantasmas do passado levam Pender para a época na qual poderia viver uma vida diferente e mais intensa -a época na qual seria capaz de fazer apostas arriscadas.

A idade de ouro de Pender é a Paris de Hemingway, Fitzgerald, Cole Porter, Picasso etc. Como disse Gertrude Stein (outra protagonista do sonho do herói), eles são a geração perdida, entre uma guerra terrível e outra pior por vir (isso ela não sabia, mas talvez pressentisse). Por que eles fariam a admiração de Pender e a nossa? Hemingway responde quando explica a Pender que, para amar e escrever, é preciso não ter medo da morte. Claro, não ter medo da morte talvez seja pedir muito, mas Pender poderia mesmo se beneficiar com um pouco mais de coragem; se conseguisse decidir sua vida sem medo da noiva e dos sogros, seria um progresso.

Concordo com o que escreveu Marcelo Coelho, em artigo neste mesmo espaço na edição de 22 de junho: uma moral do filme é que "temos só uma vida para viver -a nossa", ou seja, tudo bem sonhar com a idade de ouro, à condição de acordar um dia.

Agora, o que emperra a vida de Pender não é seu sonho nostálgico, é o presente. A nostalgia, aliás, é seu recurso para não se esquecer completamente de seus próprios sonhos. É como se, para preservar seu desejo, ele o situasse numa outra época. Mas preservá-lo de quem?

Antes de mais nada, um conselho. Acontece, às vezes, que nosso sucesso não tenha nada a ver com nossos sonhos -por exemplo, você queria ser promotor de Justiça, mas fez algum dinheiro com a imobiliária de família e aí ficou, renunciando a seu sonho.

Nesses casos, uma precaução: case-se com alguém que ame seu sonho frustrado e não só seu sucesso; sem isso, inelutavelmente, chegará o dia em que você acusará seu casal de ter sido a causa de sua renúncia. Em outras palavras, é possível e, às vezes, necessário renunciar a nossos sonhos, mas é preciso escolher como parceiro alguém que goste desses sonhos e dos jeitos um pouco malucos que usamos para acalentá-los (no caso de Pender, passeios por Paris à meia-noite e na chuva).

Voltemos agora à pergunta: contra quem Pender precisou preservar seu desejo, mandando-o para outra época? Contra a noiva que desconsiderava seus sonhos? Aqui vem outra moral do filme.

Pender não é nenhum caso raro: todos nós, em média, dedicamos mais energia à tentativa de silenciar nossos sonhos do que à tentativa de realizá-los. Muitos dizem que desistiram de sonhos dos quais os pais não gostavam por medo de perder o amor deles. Mas por que Pender recearia perder o amor da noiva, que ele não ama, e dos sogros, que ele ama ainda menos?

O fato é que somos complacentes com as expectativas dos outros (que amamos ou não) à condição que elas nos convidem a desistir de nosso desejo. É isso mesmo, a frase que precede não saiu errada: adoramos nos conformar (ou nos resignar) às expectativas que mais nos afastam de nossos sonhos. Aparentemente, preferimos ser o romancista potencial que foi impedido de mostrar seu talento a ser o romancista que tentou e revelou ao mundo que não tinha talento. Desistindo de nossos sonhos, evitamos fracassar nos projetos que mais nos importam.

Em suma, da próxima vez que você se queixar de que seu casal afasta você de seus sonhos, lembre-se: foi você quem o escolheu.

E mais um conselho: se você encontrar alguém disposto a caminhar na chuva do seu lado, não fuja; molhe-se.

ccalligari@uol.com.br

@ccalligaris 

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