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sexta-feira, 2 de março de 2012

A deselegante ira de Medea


Antes de mais, quero ressaltar a natureza puramente reflexiva do que segue, nada comprometida qualquer esforço por reforçar meus argumentos a partir de citações de autoridade. Nem socióloga, nem antropóloga, tampouco filósofa ou psicanalista, o que se projeta de mim neste espaço é uma tentativa de articulação de pensamentos dispersos e fragmentários.

Ocorre que há dias em que um sujeito desperta mergulhado numa vontade furiosa de gritar. Mais ainda, movido por uma energia daimônica que o impele a dizer todas as suas verdades ao mundo, de esbravejá-las, de verem transformados sua boca e braços numa poderosa metralhadora apontada para a humanidade (aqui, a imagem da moça com a metralhadora acoplada na perna amputada no “Planeta Terror” do Tarantino me provoca um risinho sacana). 

O meu ponto é o seguinte: creio que seja justo dar-se ao luxo, ao menos naqueles momentos cruciais e decisivos da vida, de manifestar verdadeira e honesta ira, a despeito de termos sido ensinados a percebê-la como “pecado capital”.

Fonte: http://www.rose-mcgowan.com/gallery/albums/Movies/2007%20Grindhouse/Lobby%20Cards/PlanetTerror-LobbyCards_003.jpg

Esboço aqui o embrião de uma reflexão amoral, ainda que falha, e estou tentada a interpretar as manifestações da ira como o sincero grito dos injustiçados. Ainda que a injustiça neste caso resida, muitas vezes, na consciência do irado de ter sido vítima de uma falha grave no necessário sistema de autocontrole que nos permite viver em sociedade. Em síntese: é preciso ser hipócrita para existir relativamente incólume neste mundo. E os atenuantes ou agravantes de nossa hipocrisia cotidiana são, mais do que uma questão de caráter, ditados por fatores externos, ligados ao nosso instinto de sobrevivência. Explico: se desejo permanecer num emprego, a despeito do meu desprezo pela incompetência do meu chefe, não o critico. Simples assim.

Veja, se não estamos sós no mundo e dependemos de uma rede de relações para existirmos, desde muito cedo aprendemos a calar nossas mais sinceras opiniões e a frear em nós todo e qualquer gesto que possa ferir, ofender, depreciar ou mesmo interferir no bem estar de nossos “semelhantes”. Trata-se de aprender a tolerar, respeitar, em suma, ter bons modos, ser ético, polido, “educado”.

Se um sujeito é cumpridor das regras de convivência socialmente impostas e, portanto, vive num esforço diário para exercê-las junto àqueles que o circundam, é natural que anseie por receber dos que o cercam algo semelhante.  


(Falling Down, Joel Schumacher, EUA/Fr, 1993)

Não me refiro aqui aos bons modos somente. Refiro-me à percepção mais ampla e genérica de que toda ação gera, de fato, uma reação. À ideia, que muitas pessoas rejeitam ou ignoram, de que os seus atos, sejam quais forem (bons ou maus – vide “a corrente do bem”), refletem na vida não apenas dos seus entes queridos mas, a imensa maioria das vezes, na de estranhos.

E não me deterei nos excêntricos, nem nos artistas, intelectuais ou outsiders, que sempre os houve no mundo, quase sempre minorias marginalizadas por necessidade, desejo ou oportunidade. Refiro-me ao sujeito ordinário, a mim e, provavelmente, a você.

Parece-me uma conta fácil de se fazer: o que não desejo para mim, não proporciono aos outros. Num mundo ideal, viveríamos assim. 

O sentimento de injustiça ao qual aludo (e creio ser um grande motivador para a ira e, por meio dela, para ações deselegantes, grosseiras, agressivas e - no limite – violentas) deriva, muitas vezes, da consciência de que a energia investida em viver segundo as regras sociais não gera um retorno satisfatório. E este sentimento é cumulativo. Nenhum “injustiçado” consegue com tranquilidade zerar o seu “injustiçômetro” a cada manhã. Muito embora, é verdade, existam pessoas mais espiritualmente evoluídas, mais emocionalmente equilibradas do que outras.

Fonte: http://ocaosreina.files.wordpress.com/2011/08/caosreina2.jpg

Para dizer o óbvio: as pessoas são diferentes.  Eu prefiro pegar a esteira de Lars Von Trier e crer que o “caos reina”.

Fomos ensinados a viver “sob controle”. Nossa natureza, entretanto, é caótica. Não roubamos, assassinamos e violamos por termos sido ensinados a viver assim, de modo a garantir a sobrevivência dos grupos, fortalecê-los e, com isso, alcançar a nossa civilidade. E, principalmente, por nos terem sido impostas regras e sanções, sejam elas oriundas da fé ou do Estado.

O “amor ao próximo” e a “solidariedade” são a versões “hollywoodianas” de algo em nós – respeitar e ser generoso – que reside no limiar entre o caráter e a circunstância.

Se eu escolho (em conjunto ou individualmente) um determinado percurso na vida, que implica em ações cotidianas no meu universo familiar, afetivo e profissional, e trabalho honestamente por ele (sem ludibriar ou prejudicar ninguém) na direção da construção de um “projeto” (fadado a falhas no planejamento, frustrações e ajustes, obviamente) e, no meio do caminho, esta escolha pessoal é certeiramente atingida pela interferência de um terceiro, desestabilizando descaradamente o meu caminho com a promessa ao(s) meu(s) parceiro(s) de maior satisfação, benefícios, lucro ou felicidade num outro empreendimento, eu não tenho o direito de me indignar? 

Ser tolhido de projetar e perseguir o futuro, bem como de conservar e desfrutar do presente, não é uma forma de ser roubado? Se fosse com a sua vida, você não ficaria irado e mergulhado em sentimentos e pensamentos nada politicamente corretos? Bill, o furioso Michael Douglas de Joel Schumacher, tornou-se icônico neste sentido. E, num exemplo infinitamente menos mass media, Medea (aqui, a de Lars) também. Quem de nós ousaria não reconhecer a si mesmo em algum traço de sua humanidade? 


 (Medea, Lars Von Trier, Dinamarca, 1987.)

O fato é que, aos “educados” resta a catarse simbólica de imaginar-se (num sonho ou delírio) esmagando o crânio do forasteiro, ou imagem qualquer que o valha. Eu? Eu tenho delírios de um sermão arrasador, de uma lavada discursiva homérica, e procuro voltar a dormir.

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