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sexta-feira, 16 de março de 2012

Cinema, urubus e bruxarias


Não falarei sobre urubus, antes de mais. Foi apenas um trocadilho infame. 

Questões de "foro íntimo" atrasaram as postagens programadas para a semana, sorry for that. Somente hoje pude, vejam, ler o Pondé da segunda! (Mas o "The walking dead" sagrado da terça eu vi. E vou sim escrever logo sobre isso, já que a cada semana sigo mais convencida da força simbólica que o apocalipse zumbi tem em nossos dias.)

O fato é que, segundos antes de chegar ao texto do filósofo, eu lia a notícia que anuncia a estréia no Brasil da nova e deliciosa - mas nem por isso pouco trágica - comédia de Nanni Moretti: Habemus Papam. Pensei: taí, vou escrever algo sobre este longa italiano do qual gostei muito, e que, com o pretexto de desvendar os bastidores de um Conclave, trata com bom humor ímpar de alguns dos mais profundos impasses da alma humana frente às exigências da vida. Além de, muito importante, ter me ajudado a não infartar durante as várias turbulências que enfrentei num vôo de volta da Bahia neste ano. 

 

Eis que, entretanto, o texto do Pondé traz uma temática, digamos assim, mais "contundente". E que a mi me gusta e interessa há muito: a perseguição às "bruxas" realizada pelos tribunais de inquisição, sob o olhar atento e extasiado do povão. Claro que o tema vem em Pondé para ilustrar algo mais interessante ainda: a datação, digamos, da própria ideia de heresia, que transcende as "orientações" presentes nas escrituras, bem como aspectos morais e éticos, para dialogar com o dado cultural, social e político.

Bacana, não? Com algum "samba-no-pé" o assunto pode até ser linkado ao próprio longa de Moretti, já que, tanto num caso quanto no outro, é a condução da interpretação das Escrituras Sagradas feita lááá no Vaticano quem determina o desenrolar das tramas, lato e stricto sensu.

 

Acerca da questão da perseguição às mulheres e antes da leitura que ora vos recomendo, evoco duas referências fílmicas de qualidade: A primeira data de 1922, e trata-se de um documentário bastante interessante que dialoga diretamente com um dos livros mencionados por Pondé, o Malleus Maleficarum, traduzido como O martelo das feiticeiras, e que nada mais é do que um manual medieval para a identificação, inquisição, tortura e execução de mulheres suspeitas de bruxaria. O título do documentário é Häxan - A Feitiçaria Através dos Tempos, uma produção sueco-dinamarquesa dirigida por Benjamin Christensen que, tão neutro quanto possível, para além de descrever o processo de identificação e combate à feitiçaria, aponta a igorância, o medo e o abuso de poder envolvidos. É de arrepiar, não apenas pela qualidade, mas também pela capacidade de manter-se interessante e atraente ainda hoje, tempos em que os efeitos especiais seduzem muito mais do que a essência das narrativas. (Sobre isso cabe comentar que recentemente assisti O gabinete do Dr Calligari e penso em, em breve, juntá-lo a outras obras das décadas de 20 e 30 que são referência no gênero e escrever algo).

 

Minha segunda "evocação" é o já mencionado Anticristo (2009), polêmico longa do também dinamarquês Lars Von Trier, que traz nas pesquisas de doutoramento da protagonista - a questão do femicídio - tanto o argumento para o desenrolar da trama quanto o mote para a interpretação de uma imensa quantidade de símbolos belamente distribuídos filme adentro.

É isso! O Pondé da semana segue abaixo, mais explicativo em seu estilo do que o usual, mas divertido em sua dor como sempre.

Domingão no Parque - Luiz Felipe Pondé 

Folha de São Paulo - Ilustrada,  12/03/2012

Uma das coisas que mais me espantam é o encanto que muita gente alimenta pelos hereges medievais, associado à quase total ignorância sobre suas heresias. Confundem-se manias "teenagers" com heresias sérias.

Faça uma "regressão para vidas passadas" em alguém e verá que ela foi uma bruxa queimada na Idade Média ou algo semelhante. E ela acha isso chique porque pensa nessa "bruxa" queimando sutiã em Paris no século 14.

Não conheço ninguém que tenha sido uma aborígene insignificante (sem querer ofender os aborígenes, é claro, trata-se de uma cultura sem a qual o mundo não sobreviveria).

Coitadas dessas "bruxas". Para começar, pelo menos no universo entre o que chamamos hoje de França, Bélgica, Holanda e Alemanha (região do rio Reno), entre os séculos 13 e 15, essas mulheres não se diziam bruxas, mas sim cristãs puríssimas.

O famoso livro "Martelo das Bruxas" (Malleus Maleficarum, para os íntimos), escrito no século 15, era um manual para "lidar" com essas cristãs "béguines" (termo sem tradução decente em português porque chamá-las de "beatas" é maldade).

Quando você ouvir alguém se referir a essas mulheres como "bruxas", tenha certeza que ele não sabe do que está falando. Caras como os que escreveram o "Malleus" é que chamavam essas mulheres de bruxas. Elas falavam de Deus, de caridade, de amor, de conhecimento "direto de Deus" e seus desdobramentos (aqui residia o principal problema). A partir do século 17, mais ou menos, passamos a chamar essas mulheres de místicas.

Anos atrás, comecei a pesquisar alguns textos dessas místicas medievais. Interessava-me o fato de que muitas delas tinham sido consideradas hereges.

Entre 1994 e 2003, entre Paris e Marburg (Alemanha), me dediquei a duas delas mais cuidadosamente, Marguerite Porete e Mechthild von Magdeburg.

A primeira foi queimada como herege em 11 de junho de 1310, em Paris, place de la Grève (reza a lenda que não deu um pio enquanto ardia na fogueira). A segunda morreu uma morte razoavelmente tranquila em alguma data desconhecida entre 1282 e 1294, num mosteiro, apesar de ter passado por apuros com a Inquisição e de ter sido ajudada, pelo que parece, por um amigo ou primo abade poderoso da região.
O título do livro queimado com a Porete é "Le Miroir des Simples Âmes Anéantis" (o espelho das almas simples e nadificadas). Já o da alemã que escapou do pior é "Das fliessende Licht der Gottheit" (a luz fluente da deidade).

Ambos trazem a marca dos excessos dessa escola mística chamada de renana: elas e Deus são da mesma substância, de onde se deduz, entre outras coisas, que elas não precisavam seguir códigos morais exteriores como os que não sabiam o que elas sabiam.

Elas ("almas liberadas", "nadas divinos") eram sem "matéria de criatura", logo, Deus. A Igreja e (quase) todo mundo via nisso simples soberba desmedida.

A esse "erro de doutrina", o Concílio de Viena de 1313, sobre essas "béguines", chamou de "confusão de substâncias".

Se recuperarmos o que nos diz o grande historiador Huizinga em seu "Outono da Idade Média" (ed. Cosac Naify), a execução desses hereges era um "domingão no parque".

As famílias iam com seu ovo duro, suas músicas prediletas (estou fazendo uma adaptação irônica do texto de Huizinga aos dias atuais), seus cachorros, e faziam tai chi enquanto esperavam a criminosa chegar. Os homens comparavam seus cavalos ou carroças e as mulheres se vangloriavam, em silêncio, por seus belos seios e belas pernas. As feias, como sempre, ficavam bravas com o sorriso seguro das mais graciosas.
Mas o melhor mesmo era o interesse das crianças e os tomates podres que seus pais davam para elas para que brincassem de jogá-los nos hereges. Alguns pais se emocionavam com a precisão de alguns de seus pequenos príncipes.

Herege, hoje, é chique, mas lá, você estaria jogando pedra nela como numa "Geni". Você a veria como se vê hoje um pedófilo, um reacionário, um capitalista porco, enfim, um desgraçado, uma prostituta, que todo mundo diz que é "bonitinha", mas todo mundo detesta (menos os consumidores).

quinta-feira, 8 de março de 2012

Maternidade, Inferno e Sétima Arte - 3ª e última parte

Quando comecei a burilar a ideia que resultaria nesta primeira série temática, sabia que teria dificuldades para realizar recortes, dada a quantidade imensa de obras que, à sua maneira, dariam conta de exemplificar com qualidade o texto. 

A questão da maternidade, como condição para a vida de todas as espécies, é certamente tema fértil. O que me interessava, entretanto, era chamar a atenção para um aspecto em especial: aquelas narrativas fílmicas cujo cerne é a discussão sobre a ambiguidade da figura materna. Ambiguidade esta que se constrói no desvelamento de nuances sombrias da figura maternal sem, contudo, apagar o seu caráter intrinsecamente ligado ao amor, à entrega e  à generosidade. A questão era pensar as obras que se fazem a partir justamente da tensão - e não anulação - entre a natural relação de dependência afetiva construída entre mães e filhos e, concomitantemente, aos males, dores e conflitos resultantes desta.

Ainda assim, seria possível, por exemplo, optar por um recorte de gênero. Coisa que não fiz. Aliás, procurei chamar atenção no primeiro texto da série para o fato de o tema ser fértil a diferentes gêneros, dependendo da condução da tensão exposta, bem como da opção da narrativa por assumir ou não uma postura, digamos, maniqueísta, em relação a essa tensão. Interessavam-me menos as óbvias, embora assustadoras, mães deliberadamente más. O "mal" ao qual o "inferno" do título da série se refere não deveria ser necessariamente um traço acentuado do caráter das mães em questão. E nem dos filhos, simplesmente. Isso serviria muito bem a narrativas de horror, em que mulheres inocentes engendram o filho do "coisa ruim", como tem-se visto nos bons e maus herdeiros de O bebê de Rosimary (1968), de Polanski. Recentemente, aliás, acompanhei a primeira temporada da série American Horror Story (criada por Ryan Murphy e Brad Falchuck), em que esta questão é trabalhada de modo muito competente, numa espécie de homenagem, infelizmente só identificada por aqueles que detêm o repertório dos grandes clássicos do cinema de horror.

Jessica Lange, fenomenal como Constance Langdon em AHS, e a "encomenda"
Penso que uma narrativa torna-se tanto mais complexa e interessante, quanto mais se aproxima da complexidade e ambiguidade intrínsecas à nossa condição enquanto humanos. Nossa tendência a relativizar tudo aquilo para o que não estamos seguros de formar uma opinião é tão prejudicial quanto, entendo, a tendência que temos para não relativizar a forma como produzimos e administramos nossos afetos. 

No campo doa afetos, é preciso que se mergulhe em certezas e posições absolutas, sob o risco de ser-se rotulado sujeito inseguro, mal resolvido ou emocionalmente doente. Que pena. Creio que muito se sofre mundo afora justamente por criarmos expectativas radicais e puristas neste sentido. 

Quero dizer com isso o que muitos já sabem: amor e ódio, desejo e repulsa, paixões que são, coexistem em tensão constante, cujo limiar é sim muito tênue, muito frágil. E nós, humanos, espertinhos que somos, criamos muitas estratégias para mascarar, subverter e descontaminar os nossos afetos, de maneira que possamos simplesmente não questionar o nosso amor, por exemplo, ante os estados de angústia nos quais mergulhamos vida afora.

Em outros termos: não há lei que obrigue mães e filhos a amarem-se incondicional e deliberadamente, de modo linear, indiscutível e blindado em relação aos tropeços da vida. Mas fingimos que há, para que possamos por o dedo em riste no nariz daqueles que esperamos que nos amem, ou que esperam por nós serem amados.

Esta sede por equilíbrio e segurança é, a meu ver, a responsável pela repulsa que experimentamos ante narrativas em que filhos demonstram sentimentos "ruins" em relação a mães - e vice-versa. Reconhecer traços de nossa humanidade em personagens assim tão "cruéis" é uma forma de sermos obrigados a assumir a fragilidade de nossa própria estrutura emocional e é, pessoalmente, o tipo de catarse que mais me interessa.

Charlotte Gainsburg, premiada por sua maternidade em Anticristo
Suspeito que o meu interesse neste viés tenha se materializado a partir de Anticristo (2009), de Lars Von Trier. Ali, narrativa acerca de um processo de assimilação da perda ou, em outras palavras, de um doloroso exercício de expurgação da culpa, "ela" é a mãe que, talvez, tenha sido responsável pela morte do próprio bebê. Diga-se de passagem, em condições bastante favoráveis aos detentores do dedo em riste: durante uma relação sexual. O que se discute ali, a "condição" feminina na cultura patriarcal, remonta simbolicamente ao Édipo freudiano mas, também, à Medeia de Eurípedes.

Hoje, trago um dos filmes mais pungentes ao qual assisti nos últimos tempos: Feliz que minha mãe esteja viva (Je suis heureux que ma mère soit vivante, Fr, 2009), dirigido por Claude e Nathan Miller.

Trata-se de uma história sobre abandono. O que, por si, já permite inferir o seu desenrolar. Mas não é tão simples. A tensão narrativa vai sendo construída primeiramente, no esforço por se retratar o pequeno Thomas Jouvet, que aos cinco anos vive com uma jovem e irresponsável mãe e ajuda a cuidar de seu irmãozinho Patrick, ainda um bebê. A despeito de qualquer dificuldade, Thomas é louco pela mãe. E é este o traço de sua personalidade que conduzirá todos os acontecimentos posteriores ao período em que ele e o irmão são dados para adoção. 


Apesar da "sorte" de terem sido escolhidos juntos por um casal amoroso e bem sucedido, a rejeição de Thomas à vida que lhe foi oferecida e a obsessão em localizar a mãe para finalmente compreender suas razões dominam os 14 anos seguintes. Introvertido, agressivo, contido, o garoto busca exaustivamente por aquela mulher que prometeu a ele que viria buscá-los  - e pelo contato com as limitações e falências dela, inevitavelmente. Não custa sugerir atenção para a tensão sexual que se estabelece, embora de modo muito sutil, realmente velado. Sobre relações incestuosas, aliás, fiz algumas sugestões no segundo texto desta série.

Mais do que isso, seria dar spoilers, e o filme merece ser visto. Menos expressivo na construção de cenas simbólicas que os anteriormente comentados, Feliz que minha mãe esteja viva opta por um realismo bastante útil para a composição de sua atmosfera. Ainda assim, ressalto a breve passagem em que o menino Thomas usa a mãozinha fechada em círculo como uma espécie de luneta para delimitar o foco de seu interesse. Em tempo: o título remete a uma fala de Thomas nos instantes finais da película e estes, eu garanto, são de arrepiar! Espiem!


Ainda, caso o inferno seja a injustiça cometida contra um filho e o percurso doloroso de sua mãe para protegê-lo, há espaço para o belo drama sul-coreano Mother-em busca pela verdade (Madeo, 2009, dir. Joon-ho Bong).
E será o traçado do inferno também a dor de uma mãe cuja filha desaparecida pode ter sido morta num nos ataques terroristas em Londres, como no comovente franco-argelino Destinos Cruzados (London River, 2009, dir. Rachid Bouchareb). Mas, nesses casos, a questão da ambiguidade praticamente desaparece.

Blogs são cobrados por vídeos do YouTube

 Reproduzo a íntegra da notícia veiculada ontem no Estadão e que me desestimula a continuar inserindo vídeos nos textos. Na contramão da comodidade (a meu ver, inofensiva) oferecida pelo Youtube, os blogs, ferramentas pessoais (porém abertas, ao contrário das redes sociais, que dependem da aceitação de "amigos"), correm o risco de ter de pagar por RETRANSMISSÃO de material cujos direitos já foram pagos pelo próprio Youtube. Eu, com esse salário mixo de professorinha, não posso nem brincar de correr este risco. Infelizmente.
 
Blogs são cobrados por vídeos do YouTube

Por Tatiana de Mello Dias

Blogueiros recebem cobrança de R$ 350 por incorporarem vídeos do YouTube; Ecad diz que cobrança é legal

Glória Braga, superintendente do Ecad. 
FOTO:Divulgação


SÃO PAULO – O Ecad, escritório central de arrecadação e distribuição, quer receber pagamento de blogueiros. A organização começou a cobrar R$ 352 mensais de blogueiros que incorporam vídeos do YouTube em seus posts — a justificativa da entidade é que os vídeos são uma forma de “retransmissão musical” e, por isso, os donos de blogs precisam pagar direitos autorais.
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A primeira a receber a cobrança foi Mariana Frioli, do blog A Leitora. Mariana estranhou quando recebeu, na semana passada, uma ligação de um estagiário do Ecad. Ela não havia fornecido seu celular a ninguém. Além disso, seu blog é pessoal e fala sobre suas próprias leituras. O estagiário explicou que a cobrança referia-se ao trailer do filme Delírios de Consumo de Becky Bloom e enviou por e-mail mais detalhes sobre a cobrança.
“Perguntei porque teria que pagar se eu não fiz upload e meu blog é pessoal. O rapaz disse que, de acordo com o Ecad, retransmissão tem que ser paga, independente do Ecad já ter recebido do YouTube”, conta Mariana.
No e-mail, o estagiário do Ecad enviou o “cadastro de mídias digitais”, um formulário que o Ecad usa para efetuar a cobrança.
“Identificamos a transmissão de seu site através de Webcasting, na categoria Institucional/Promocional de Entretenimento Geral. O valor mensal é de R$ 352,59 que corresponde a 7 UDAs (Unidade de Direito Autoral). Segue anexo o formulário para preenchimento. Por favor, nos devolver por e-mail preenchido, assinado e escaneado”, diz a mensagem. O formulário tem espaço até para os blogueiros fornecerem os dados de cobrança.
“Não existe nenhum trabalho de cobrança de direito autoral focado em blogs e sites, porém, todo usuário que executa música publicamente em site/blog ao ser captado pelo setor responsável do Ecad, pode receber um contato”, justifica a assessoria do escritório. “O blog foi captado em um trabalho rotineiro e recebeu o contato. Como dito anteriormente, caso haja execução pública musical, há obrigatoriedade do pagamento da retribuição autoral”, completa.

O formulário de cadastro: Ecad pede endereço de cobrança e data de vencimento. FOTO: Reprodução
Só que o Ecad já recebe direitos autorais de vídeos postados no YouTube. O escritório assinou, no ano passado, um acordo com o Google para receber direitos por todos os vídeos musicais que circulam na plataforma.
“As diversas formas de utilização são independentes entre si, conforme preconiza a Lei de Direitos Autorais e, neste caso, o blog realiza uma retransmissão”, tenta justificar o órgão.
Segundo a assessoria, o Ecad está realizando um trabalho focado em “conscientização” para a necessidade de pagamentos de direitos autorais. Se os blogueiros contatados não pagarem, eles podem ser alvo de ação judicial. “Todo usuário que executa música publicamente em site ou blog ao ser captado pelo setor responsável do Ecad, pode receber um contato”, diz o escritório.
O jornal O Globo divulgou nesta quarta-feira, 7, que outro blog, o Caligraffiti, também recebeu uma cobrança do tipo.

Em que Paris está a sua meia-noite?

Ah, eu poderia aproveitar o ensejo e, tendo em vista a data, escrever sobre as mulheres. Mas elas, enquanto gênero e nas suas especificidades, muito embora tenham povoado minha pesquisa de doutoramento defendida mais dois anos atrás, francamente não são algo que eu deseje por hora em meus pensamentos. Ando um tanto enjoada, inclusive, de pensar na forma como o fato de ser mulher determina a condução do meu próprio caminho. Bah. Um feliz dia para as mocinhas, de todo modo. Hoje e sempre que possível.

Desejo pensar sobre sonhos, projetos, metas, que todos os temos e cremos persegui-los. Sejam sonhos singelos ou projetos megalômanos, penso que a dinâmica de uma vida saudável e produtiva depende muito da manutenção, não dos sonhos em si, mas do nosso movimento cotidiano na direção deles. E, que interessante, existem muitas diferentes dimensões para sonhar, desde aqueles inalcançáveis projetos que servem apenas como inspiração, até o planejamento que permite a aquisição de bens, a regularização de uma situação, a oficialização de um relacionamento. Cada um sonha conforme pode e o quanto aguenta, afinal.


O texto que recomendo abaixo foi escrito pelo psicanalista Contardo Calligaris, uma leitura que eu persigo, muito embora me agrade algumas vezes mais do que em outras, por ocasião do lançamento do último longa de Woody Allen, Meia-Noite em Paris (Midnight in Paris, Es/Eua, 2011). Filme que, aliás, tive o prazer de assistir numa das minhas salas de cinema favoritas (Cine Livraria Cultura, o antigo Bom Bril), e na companhia de algumas das pessoas que mais tem me permitido sonhar ao longo da vida. Pelo menos, aquela sorte de sonhos que me permitem compor uma persona muito próxima do meu ideal.

Nele, Calligaris usa como ponto para reflexão as inquietações do protagonista, escritor frustado e "vendido" para o sistema, que deseja escrever alta literatura e finalmente se vê diante da possibilidade de ter seu projeto lido por grandes referências de sua biblioteca. Esta divertida pegada surreal faz do longa uma viagem deliciosa pelos delírios de qualquer leitor, escritor ou amante da literatura. Poder sentar num bistrô com seus "mestres" e trocar figurinhas com pessoas de fato interessadas no que você tem a dizer... que sonho! (perdão pelo trocadilho infame). O que Calligaris faz, entretanto, é partir desta bela imagem para nos levar a pensarmos sobre uma tentação muito grande - da qual sou vítima confessa - a de abrir mão de nossos sonhos em nome de uma temor mascarado de falhar.
Algum tempo atrás, ouvi de um grande amigo - em muitos sentidos, um "mestre" - que, para a obtenção do sucesso profissional, a diferença entre uma e outra pessoa sobre as quais falávamos,  não estaria no talento (ou sensibilidade, vocação, brilhantismo, wathever) e sim na disciplina, que ele cunhou como "pé-de-boisismo". Tenho absoluta certeza de que, no mundo em que vivemos, ele está coberto de razão. Ainda assim, meu coração taurino continua convencido de que talento é um bem inato, enquanto disciplina se adquire, tal qual músculos definidos na academia. E isso depende muito da equação que direciona os anseios para a obtenção de metas - coisa dos disciplinados, ou para o vislumbramento do sonho, coisa de boa parte dos talentosos (ou não) e dos frustrados.

A maturidade traz o demérito da consciência de estarmos sendo constantemente julgados, avaliados, rotulados, inclusive, pelas pessoas mais próximas, que até nos amam. Para o sonhador, isso não é nada bom. Não enquadrar-se num PERFIL, não atender às expectativas do meio quando se é bem jovem já não é a forma mais serena de viver. Se disso depende o pagamento de suas contas então, muito pior.

O fato é que em alguns momentos, a autocrítica e o medo do julgamento embotam os sonhos. Da mesma maneira que nos é dada liberdade para sonhar, temos a liberdade de escolher em qual direção seguir: na construção de projetos ou numa rotina de sonhos embalada por quem poderíamos ter sido se "isso ou aquilo". E tornar-se amargo é algo que ninguém quer. Daí a necessidade de se perguntar algumas vezes na vida em que Paris fica a sua meia-noite. Em que esquina escura é preciso esperar para que seja possível viver mais em acordo com os próprios projetos.

Enfim, não pretendo concluir nada. Este longo preâmbulo, antes de se tornar brega e chato, vem apenas para introduzir o texto:


É FÁCIL DESISTIR DOS SONHOS - CONTARDO CALLIGARIS

Folha de São Paulo, Ilustrada, 07 de julho de 2011

GIL PENDER, o protagonista do último filme de Woody Allen, "Meia-Noite em Paris", quer deixar de escrever roteiros de sucesso (que ele mesmo acha medíocres) para se dedicar a coisas "mais sérias" e menos lucrativas: um romance, por exemplo. Ele acumulou dinheiro suficiente para tentar essa aventura por um tempo, em Paris, como um escritor americano dos anos 1920.

Infelizmente, Pender está prestes a se casar com uma noiva que aprecia muito seu sucesso atual, mas não tem gosto algum pela incerteza (financeira) de seu sonho. Tudo indica que ele se dobrará às expectativas da noiva, dos futuros sogros e do mundo, renunciando a seu desejo. Talvez seja por causa dessa renúncia, aliás, que noiva e sogros o desprezam (todo o mundo acaba desprezando o desejo de quem despreza seu próprio desejo).

Mas eis que, na noite parisiense, alguns fantasmas do passado levam Pender para a época na qual poderia viver uma vida diferente e mais intensa -a época na qual seria capaz de fazer apostas arriscadas.

A idade de ouro de Pender é a Paris de Hemingway, Fitzgerald, Cole Porter, Picasso etc. Como disse Gertrude Stein (outra protagonista do sonho do herói), eles são a geração perdida, entre uma guerra terrível e outra pior por vir (isso ela não sabia, mas talvez pressentisse). Por que eles fariam a admiração de Pender e a nossa? Hemingway responde quando explica a Pender que, para amar e escrever, é preciso não ter medo da morte. Claro, não ter medo da morte talvez seja pedir muito, mas Pender poderia mesmo se beneficiar com um pouco mais de coragem; se conseguisse decidir sua vida sem medo da noiva e dos sogros, seria um progresso.

Concordo com o que escreveu Marcelo Coelho, em artigo neste mesmo espaço na edição de 22 de junho: uma moral do filme é que "temos só uma vida para viver -a nossa", ou seja, tudo bem sonhar com a idade de ouro, à condição de acordar um dia.

Agora, o que emperra a vida de Pender não é seu sonho nostálgico, é o presente. A nostalgia, aliás, é seu recurso para não se esquecer completamente de seus próprios sonhos. É como se, para preservar seu desejo, ele o situasse numa outra época. Mas preservá-lo de quem?

Antes de mais nada, um conselho. Acontece, às vezes, que nosso sucesso não tenha nada a ver com nossos sonhos -por exemplo, você queria ser promotor de Justiça, mas fez algum dinheiro com a imobiliária de família e aí ficou, renunciando a seu sonho.

Nesses casos, uma precaução: case-se com alguém que ame seu sonho frustrado e não só seu sucesso; sem isso, inelutavelmente, chegará o dia em que você acusará seu casal de ter sido a causa de sua renúncia. Em outras palavras, é possível e, às vezes, necessário renunciar a nossos sonhos, mas é preciso escolher como parceiro alguém que goste desses sonhos e dos jeitos um pouco malucos que usamos para acalentá-los (no caso de Pender, passeios por Paris à meia-noite e na chuva).

Voltemos agora à pergunta: contra quem Pender precisou preservar seu desejo, mandando-o para outra época? Contra a noiva que desconsiderava seus sonhos? Aqui vem outra moral do filme.

Pender não é nenhum caso raro: todos nós, em média, dedicamos mais energia à tentativa de silenciar nossos sonhos do que à tentativa de realizá-los. Muitos dizem que desistiram de sonhos dos quais os pais não gostavam por medo de perder o amor deles. Mas por que Pender recearia perder o amor da noiva, que ele não ama, e dos sogros, que ele ama ainda menos?

O fato é que somos complacentes com as expectativas dos outros (que amamos ou não) à condição que elas nos convidem a desistir de nosso desejo. É isso mesmo, a frase que precede não saiu errada: adoramos nos conformar (ou nos resignar) às expectativas que mais nos afastam de nossos sonhos. Aparentemente, preferimos ser o romancista potencial que foi impedido de mostrar seu talento a ser o romancista que tentou e revelou ao mundo que não tinha talento. Desistindo de nossos sonhos, evitamos fracassar nos projetos que mais nos importam.

Em suma, da próxima vez que você se queixar de que seu casal afasta você de seus sonhos, lembre-se: foi você quem o escolheu.

E mais um conselho: se você encontrar alguém disposto a caminhar na chuva do seu lado, não fuja; molhe-se.

ccalligari@uol.com.br

@ccalligaris 

quarta-feira, 7 de março de 2012

Para quem ainda não entendeu o Tempo Psicológico

Orlando Pedroso em "Depósito de Tirinhas"

Eliane Brum e a sabedoria de envelhecer sem cair no ridículo


"A juventude é um erro que o tempo corrige", meus caros. Palavras de uma antiga mestra.

Associar o tempo de vida à experiência e esta à sabedoria já foi uma forma de organizar e hierarquizar sociedades. Indígenas viveram assim, outras sociedades antigas também. A figura do ancião, entretanto, é tão menosprezada em nosso tempo - desprezada mesmo, vez que nada significa além de iminência da morte - que impulsionou uma corrida pela "recuperação" estética e comportamental da juventude que, muitas vezes, beira o caricatural. 

Sem cair no reducionismo da autoajuda, creio que todas as idades tem o seu tempo e ter uma "alma jovem" não precisa ser, nem de longe, sinônimo de comportamentos imaturos, posturas anacrônicas e expressões eufêmicas que buscam mascarar as "cicatrizes" impressas em nosso corpo e espírito a medida que vamos vivendo. Entretanto, uma sociedade que avalia e organiza seus membros pelo que fazem, tem e parecem naturalmente ignora -  ou pelo menos julga secundário - o que viveram, conhecem, sabem, são.

 Assim como Eliane Brum neste interessantíssimo artigo, procuro aceitar a minha finitude inevitável com a consciência de que eu e o tempo temos feito uma troca relativamente justa. O politicamente correto expresso pela linguagem, aos meus olhos, mais do que um exercício de eufemismo mental, é só uma das muitas formas atuais de manifestar a nossa falta de bom senso.

ME CHAMEM DE VELHA - ELIANE BRUM 

 "A velhice sofreu uma cirurgia plástica na linguagem"

 Revista Época,  20 de fevereiro de 2012

Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosas” por “velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”: só aceitavam ser “idosas”.  Pensei: “roubaram a velhice”.  As palavras escolhidas – e mais ainda as que escapam – dizem muito, como Freud já nos alertou há mais de um século. Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio esperar que a língua seja atingida pela mesma ânsia. Acho que “idoso” é uma palavra “fotoshopada” – ou talvez um lifting completo na palavra “velho”. E saio aqui em defesa do “velho” – a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos.
Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. O mesmo vale para o primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável.

A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital. Semanas atrás, em um programa de TV, o entrevistador me perguntou sobre a morte. E eu disse que queria viver a minha morte. Ele talvez não tenha entendido, porque afirmou: “Você não quer morrer”. E eu insisti na resposta: “Eu quero viver a minha morte”.

Na adolescência, eu acalentava a sincera esperança de que algum vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me garantir a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem, embora circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para dizer que é claro que, se pudesse escolher, eu não morreria. Mas essa é uma obviedade que não nos leva a lugar algum.  Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena.

A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas o meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha última chance de ser curiosa.

Há uma bela expressão que precisamos resgatar, cujo autor não consegui localizar: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A vida, portanto, inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto? Porque a mesma lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice. A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor.  Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem.

Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua.  O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma.

Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está.  Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.

Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.

Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém leria um livro chamado “O idoso e o mar”?  Não. Como idoso o pescador não lutaria com aquele peixe. Imagine então essa obra-prima de Guimarães Rosa, do conto “Fita Verde no Cabelo”, submetida ao termo “idoso”: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam...”.

Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.
Como em 2012 passei a estar mais perto dos 50 do que dos 40, já começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem.  O tal do “espírito jovem”. Envelhecer não é fácil. Longe disso. Ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para descobrir com quem estão falando.  Mas se existe algo bom em envelhecer, como já disse em uma coluna anterior, é o “espírito velho”. Esse é grande.

Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.

Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências. Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para saber tudo”. Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar.  É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.

Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a palavra “idoso”, “terceira idade” e afins. Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar sua indigência.

Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto.

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)

Peça de teatro traz reflexão sobre quem "trabalha com a alma e é julgada pela aparência"

Antes de postar a matéria abaixo, interessante sob vários aspectos - da metalinguagem à reflexão em termos de valores em nossa sociedade - detive-me um instante angustiada com a questão da reprodução de material exclusivo para assinantes do jornal, sobretudo na data de publicação do texto. Fazemos isso com frequência no Facebook, mas aqui ainda não sei exatamente como a banda toca.

Ainda mais por se tratar de matéria do meu querido amigo Marco Aurélio que, ao contrário dos colunistas que costumo divulgar, pode em cinco minutos me ligar ou escrever me dando a maior bronca... espero que não.

A decisão por postar veio imediatamente após localizá-la, na íntegra, em outro blog. Bom, se alguém começou, não fui eu! Vez por outra, devo fazer isso, sempre que, nas leituras do dia a dia, encontrar material que desejo compartilhar. Vejamos no que dá.

Beleza é fundamental?

Folha de São Paulo, Ilustrada, 07 de março de 2012
MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DO RIO


A feiura, diz Umberto Eco, não é só mais divertida, mas mais interessante do que a beleza. O raciocínio está bem ilustrado em "A Vingança do Espelho: A História de Zezé Macedo", que estreia na sexta, em São Paulo.



Elenco da peça "A Vingança do Espelho", que chega a SPA peça conta a vida da atriz cujo nome, para boa parte das pessoas, traz à mente uma única imagem, se tanto: a da senhora baixinha e feiosa, de voz esganiçada, fazendo a puritana dona Bela ("Só pensa naquilo") na "Escolinha do Professor Raimundo".
E, no entanto, Maria José de Macedo (1916-1999) teve uma vasta e popular, ainda que hoje esquecida, carreira no cinema, na TV e no rádio, além de ter publicado poesia.
Marcada por sua aparência e sua voz, usou-as como atributos para se firmar como atriz cômica. Na vida privada, se dilacerou -inclusive fisicamente, por meio de inúmeras cirurgias plásticas- por conta da aparência.
"A Vingança do Espelho" mostra esses dilemas e alegrias numa narrativa metalinguística, criada pelo autor Flávio Marinho: os atores representam um grupo teatral que prepara um espetáculo sobre Zezé Macedo.
O público assiste às discussões sobre como montar a peça, com os atores apresentando e debatendo a vida e a carreira de Zezé e encenando, de forma não cronológica, alguns momentos marcantes -a fase na Atlântida, a estreia no rádio com o apoio de Dias Gomes, a "Escolinha".
"É uma peça muito simples, é em cima do ator, do espaço e da relação com o público. Como fala o Amir [Haddad, diretor], não tem truque, é só magia", diz Betty Gofman, que interpreta a atriz a quem cabe o papel de Zezé Macedo na montagem.
"Em momento algum eu tentei imitar a Zezé. Vi poucos filmes, pouca coisa dela. O que a gente fez foi tentar entender o que se passava na alma daquela mulher, tentar sentir o que ela sentia."

HOMENAGEM AO TEATRO
Aproveitando o fato de ser uma peça sobre a montagem de uma peça, "A Vingança do Espelho" discute a própria profissão teatral: os baixos salários, a escalação de atores com "presença midiática, para tirar a companhia do buraco", o favorecimento dos amigos, tudo vira tema.
"É uma grande reflexão sobre a fragilidade e a força do nosso ofício, e sobre a dificuldade de uma pessoa que trabalha com a alma e é julgada pela aparência", diz o diretor Amir Haddad.
"A TV começa a fazer tudo em cima de um certo tipo de imagem, você fica prisioneiro daquela imagem e não escapa mais, como a Zezé nunca se livrou."

terça-feira, 6 de março de 2012

Maternidade, Inferno e Sétima Arte – 2ª parte


Sim, eu prometi um francês, mas resolvi guardá-lo para amanhã. Apresento hoje um longa canadense vencedor de 25 prêmios em festivais internacionais.


Em Eu matei minha mãe (J'ai tué ma mère), de 2009, o adolescente Hubert (Xavier Dolan) é o filho de Chantale (Anne Dorval) no primeiro longa roteirizado, produzido, dirigido e estrelado pelo prodígio Dolan, que declarou tratar-se de uma obra semi-autobiográfica.
 
Há pouco eu falava ao telefone com minha mãe (é sério, não é piada) sobre o quanto acredito que, a partir de um determinado momento na vida, qualquer interferência maternal deixa de ser uma solução para tornar-se um problema. Na defesa de meu argumento, tentei explicar a ela que esta minha leitura não tem relação com o compromisso implícito que filhos detêm com pais para a velhice deles, já que, claro, este foi o primeiro entendimento dela. Nesse sentido, creio que nem caiba qualquer “porém”.

O fato é que sou facilmente seduzida pela ideia de culpar tacitamente as mães por certo retardo no amadurecimento das pessoas. Homens e mulheres, fique claro. Mais homens que mulheres, pelo que tenho visto. Mas não há regra. Independentemente, vejam, de estarem as pobres matronas cobertas das melhores intenções. 

E por favor, eu tenho coração. Não ignoro o poder e a relevância do amor materno, tampouco o vazio na vida daqueles que foram dele privados. Em última instância e na iminência da morte, por exemplo, é por ela que chamamos. Ou seja, não é sobre isso que escrevo e, sim, minha mãe vai muito bem, obrigada!

Nada disso invalida, contudo, a impressão que tenho por hora de que todos atingem um estágio na vida em que aquelas mães que se dedicam intensamente a resolver problemas dos seus rebentos (muitas vezes como um mecanismo de fuga à frustração de suas próprias vidas), desde os mais banais, como comprar cuecas, aos mais elaborados, como provê-los amplamente, tendem a fazer muito mais mal do que bem aos ex-pimpolhos, permitindo que protelem o desenvolvimento de sua capacidade e autonomia para tomar decisões, planejar, descobrir o real valor das coisas e as diretas consequências de suas ações.

Tenho outra impressão, ainda, a de que a cada geração esta postura tem se acentuado. Mecanismos de compensação para as ausências motivadas pelo trabalho ou para separações, por exemplo, resultam em adolescentes superficiais, consumistas e carentes. E aqui, quem realmente entende de comportamento humano e de adolescentes dirá que estou generalizando. E estou mesmo, e sei bem que a conduta e o caráter das pessoas não são simplesmente “condicionáveis”.

O inferno ao qual eu me refiro neste drama é construído pelo olhar do protagonista, detendor do ponto de vista segundo o qual Chantale vai sendo desenhada. Viver com sua mãe lhe é insuportável. Sem ela, entretanto, aparentemente impossível. Na direção contrária, para Chantale, dar conta da plenitude de insatisfações do inteligente e provocador Hubert é tarefa inglória, abrir mão de sua maternidade, impensável.

Entendo que o pacto de expectativas que se firma na relação mãe e filhos está, invariavelmente, fadado a frustrações. Em alguns casos maiores que em outros. Algumas vezes, melhor trabalhadas e compreendidas que em outros. Fato é que não se pode avaliar o currículo antes do parto. Nem de quem nasce e nem de quem traz à luz. E, ainda que isso fosse possível, seria apenas uma forma de criar mais expectativas - e arriscar mais frustrações. Somos sujeitos ao erro principalmente naqueles momentos em que sequer nos damos conta de que poderíamos errar.

Chantale é um doloroso exemplo disso. É dela, no limite, a culpa pela ausência do pai de Hubert. É ela quem resta estacionada (e incapaz de compreendê-lo) atravancando seu caminho. Mas, é ela quem o salva. E ele, transgressor, sensível, inteligente, inquieto, imaturo, esbraveja sua angústia. Filho “aborrecente”, ele julga absolutamente insuportáveis os gestos, gostos, modos, colocações da mãe. E é ele quem conduz a negação de sua existência, mediante um julgamento ora cruel, ora risível, segundo o qual tudo o que orbita o universo de sua mãe é kitsch, desnecessário, excessivo, superficial, declinável. Assim ele a nega – e a mata.

Assim, ele prefere a professora e o namorado. Como diria minha mãe, "os de fora". 

As tensões entre amor e ódio, rejeição e projeção, repulsa e desejo estão aqui novamente, desdobradas, diluídas, constantes.

Para completar, importante ressaltar a felicidade de Dolan na construção da atmosfera sufocante em que o jovem Hubert se encontra. As cenas em câmera lenta, bem como os sonhos e delírios do garoto dão um tom a um tempo denso, triste e delicado ao seu ponto de vista sobre a vida e o mundo que o cerca.

Ah... e há as cores... Mais uma vez, como no caso de Precisamos falar sobre Kevin, nota-se um trabalho minucioso na composição das cores a cada cena. No caso específico da “cafonice” de Chantale, por exemplo, até o revestimento do sofá e o lustre do apartamento transbordam significado.

Trata-se aqui de um capricho adolescente, do drama de uma mãe incompreendida, de um retrato da crueldade a que estamos fadados todos na contemporaneidade (dado o poço sem fundo de nossas vontades), de nada disso, de qualquer outra coisa? Fosse simples assim responder, que graça teria?


Em tempo, o cinema nos presenteia há muito com matéria muito fértil para quem se interessa pelas tensões e problemas resultantes da ambiguidade da relação mãe e filho. Obras como  La Luna (La Luna, Ita/Usa, 1979), de Bernardo Bertolucci e Mãe e Filho (Mat i syn, Rus, 1997), de Alexander Sokúrov, são apenas dois belos exemplos destas tensões que enveredam por trilhas incestuosas.

AMANHÃ, O FRANCÊS QUE ENCERRA ESTA SÉRIE.

Músicas para rogar praga em ex

Pessoas iniciam e terminam relacionamentos o tempo todo, no mundo todo, a cada dia em maior quantidade, intensidade e variedade de desfechos. Mas algo que não se pode deixar de notar é que - sempre e invariavelmente - o portador das nádegas encontra meios de sinalizar sua insatisfação para o portador do pé. Canções (sobretudo as mais adocicadas) gravadas, enviadas por e-mail, postadas no Facebook, enfim, são sempre muito requisitadas nestas deprimentes ocasiões.

Este playlist é inspirado em uma matéria que "linkei" no facebook há pouco tempo, acerca das razões que levam os ouvintes de canções como Someone like you, da musa-relâmpago britânica Adele, ao pranto descontrolado. 

O fato é que andei prestando atenção na referida e pegajosa cantilena e fiquei impressionada com a falta de amor próprio da moçoila (que ainda declara publicamente que suas composições foram todas motivadas por fatos de sua tenra vida amorosa). Espiem:

Never mind, I'll find someone like you
I wish nothing but the best for you too
Don't forget me, I beg
I remember you said:
"Sometimes it lasts in love, but sometimes it hurts instead"

Vejam vocês, na canção, a garota declara que - não bastasse ter sido abandonada pelo bofe e substituída por alguém "mió"  - irá encontrar ALGUÉM COMO ELE!!! Fala sério, que nojinho! Não seria minimamente digno desejar alguém melhor?

Surpresa com tamanha derrocada de autoestima, fui beber na fonte do precioso cancioneiro popular brazuca. Afinal de contas, se tem uma coisa que a nossa gente sabe, é dar a volta por cima.

Vejam que beleza este exemplo atemporal composto pelo velho Chico:

Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer.
Olhos nos olhos,
Quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

E que venho até remoçando,
Me pego cantando, sem mais, nem por quê.
Tantas águas rolaram,
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você.

Ahhh... agora sim! Tudo bem que o eu lírico aqui, assumidamente mulherzinha submissa, não consegue deixar de pensar no ex-amado. Mas, pelo menos, concentra-se em deixar bem claro pra ele que seus sucessores a amaram "mais e melhor". Assim pode...

Um outro mandinguento de plantão é ex-cabeludo Rei Roberto... na célebre Detalhes ele até aceita o fim do romance, mas elenca um rol de minúcias de deixar qualquer detalhista enlouquecida e sem saída nos próximos 150 anos.

Vejam que audácia:

Não adianta nem tentar
Me esquecer
Durante muito tempo
Em sua vida
Eu vou viver...
(...)
Se um outro cabeludo
Aparecer na sua rua
E isto lhe trouxer
Saudades minhas
A culpa é sua...

O interessante aqui é a progressão na praga que ele roga: primeiro o cabelo, depois o ronco do carro, a calça desbotada, os sussurros no ouvido, o retrato, o toque do outro no corpo dela e, enfim, a PRAGA MASTER:

Pensando ter amor
Nesse momento
Desesperada você
Tenta até o fim
E até nesse momento você vai
Lembrar de mim...

Ou seja, a pobre coitada não estará livre de pensar no ex-afeto nem na hora "H". Não estou certa se é um caso de extrema pretensão ou imensa crueldade. Ou ambas. De qualquer forma, ao detentor da bunda, melhor desejar maior má sorte ao outro do que desejar um clone dele no futuro, não é mesmo?

É verdade que essa praga de canção de dor de chifres e com altos índices glicêmicos reside até na high art da nossa MPB. Então, para encerrar este breve tópico, o mestre Tom Jobim declara a sua total, absoluta e irrestrita incompetência para virar a página:

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar
E cada verso meu será
Prá te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta ausência tua me causou
Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida...

Chuta, que é macumba esta memória!

Pois então, é isso! Talvez Adele tenha optado por compor uma canção na condição de vítima da pragra grudenta do não esquecimento pois músicas para rogar pragas em ex já há aos montes. Você se lembra de mais alguma?

* ATUALIZAÇÃO: Por sugestão de uma amiga, faço a seguinte ressalva: Adele, Chico, Roberto (em parceria com Erasmo) interpretam composições próprias. Tom, para quem não sabe, interpreta parceria com Vinícius de Morais. A letra da canção é do poetinha, célebre pelos derramamentos.
** Os vídeos inicialmente postados aqui foram removidos após a divulgação de cobrança feita pelo ECAD pela retransmissão de material disponível no youtube. Meu salarinho de professora não me permite correr este risco.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Maternidade, Inferno e Sétima Arte – 1ª parte

OOOPS! Pois é, meus caros: no pain, no gain. Primeira lição da blogueira neófita: se você não tem certeza de como funciona um recurso ou aplicativo, não use, salvo se estiver consciente do teste. Se desconhece o caráter instável e efêmero de textos online, mantenha uma cópia salva em sua máquina. Se você não fez nada disso, mané, bem feito! Escreva de novo.
Na tentativa de corrigir uma gafe na ordem da citação do elenco do filme ao qual dedico este post, caro leitor, a brilhante pessoa que vos escreve PERDEU TODO O TEXTO. E não, ele não está em nenhum outro lugar, claro que eu já procurei.
Tentarei refazê-lo agora, com todo o risco de não passar muito perto do original. Mas aprendi a lição: backups, backups, babe!

Preâmbulo

No post original eu havia descrito detalhadamente o ponto de partida para o olhar concentrado em aspectos comuns (temáticos, estilísticos, autorais, de gênero, etc.) que resulta nos agrupamentos de filmes que tenho realizado, e que favoreceu o "start" no Projeto Mini Mostras, uma válvula de escape para os cinéfilos de botequim como eu.  Mas, ai que preguiça de escrever tudo de novo! Num novo post eu entro nestes detalhes quase off topic. Vamos ao que interessa!


Psycho

Em 1960, o gênio do suspense Alfred Hitchcock dirigiu a adaptação do romance de Robert Bloch que deu origem ao argumento de um dos roteiros mais conhecidos dos fãs de cinema de suspense: a psicopatia de Norman Bates sempre foi, mutatis mutandis, culpa de sua mãe! E todo mundo sabe no que isso deu... Mães e filhos vem digladiando ficcionalmente há muito tempo, graças à ambiguidade do complexo de Édipo.

Não, não farei aqui psicologismos baratos. Bem sei que não li Freud o suficiente para não incorrer no risco de dizer asneiras. O que segue é a tentativa de organizar e partilhar alguns pensamentos e impressões que me vem perseguindo nos últimos tempos, à medida que vou descobrindo e visitando novas ficções fílmicas. Para o caso deste primeiro post, resolvi comentar a relação entre maternidade e violência. E, ok, como não sou mãe, talvez esteja aberta a temporada de dizer asneiras sim.

A filmografia que venho acompanhando neste sentido abarca uma quantidade expressiva de obras, mas para a seleção que segue preferi me ater a alguns filmes recentes, de qualidade, e cujo cerne da questão seja explorado por um viés mais sombrio. 

Diferentes diretores de diferentes países tem direcionado o seu olhar para as relações parentais ao longo da história do cinema. Desde as adaptações de mitos e clássicos da literatura até os roteiros mais comerciais, passando de modo brilhante pelo cinema independente, a ambiguidade e a frustração, desdobradas nos sentimentos de falência e abandono, bem como na tensão entre amor e ódio, e no deslocamento por vezes confuso do desejo, a sétima arte tem sido sítio fértil para o tema.

Ainda que a maternidade não esteja no centro (e sim diluída no contexto) do enredo dos recentes e premiados  O garoto da bicicleta (Le gamin au vélo, Bélgica, 2011) de Jean-Pierre Dardenne e Em um mundo melhor (Hævnen - Dinamarca, 2010) de Susanne Bier, estes são ótimos exemplos de como crianças mergulhadas no sentimento de abandono tem potencial como protagonistas bem sucedidas em dramas.

Estabelecer um ponto de tensão aguda entre mãe e filho, entretanto, parece-me uma estratégia produtiva no sentido de alcançar os corações menos sofisticados e, concomitantemente, lançar mão de enredos polêmicos, dolorosos e, em alguns casos, doentios. Serve a alguns diferentes gêneros, como é o caso do suspense/terror Psicose (Psycho, USA, 1960), da comédia, ainda que de humor negro, como em Jogue a mamãe do trem (Throw Momma from the Train, 1987), mas serve sobretudo ao drama, como é o caso deste pesadíssimo filme que abre a série.

Metáforas da redenção


Inevitável abrir esta série falando de Kevin. Sim, Precisamos falar sobre Kevin (We Need to Talk About Kevin, UK/USA, 2011) . 


Dirigido por Lynne Ramsay e aclamado pela crítica, este drama - cuja montagem estonteante e caótica perpassa memórias e vivências da mãe de um jovem psicopata - traça uma rota dolorosa para a redenção.

Vê-se que os acontecimentos posteriores ao brutal assassinato de colegas de escola pelo adolescente Kevin não fazem da vida desta mãe novaiorquina menos infernal do que os dezesseis anos anteriores, em que ela e o filho estiveram imersos em uma rotina cruel de expectativas, frustrações, violência e incomunicabilidade, resultantes, sugere-se, da gravidez e casamento inesperados e da indesejada mudança na rotina.

Pequenas doses de rejeição e inabilidade surgem da mãe na direção de um bebezinho, mas nada que possa ser diagnosticado como depressão pós-parto. O que segue em crueldade, frieza, cinismo e manipulação, guardadas as devidas proporções, me remeteu à galeria de crianças malignas dos melhores filmes de terror.

O mérito do filme reside em grande parte na magistral atuação dos protagonistas. Tilda Swinton no papel de Eva Khatchadourian, a desafortunada (e simultaneamente insatisfeita) mãe, John C. Reilly como Franklin, o pai permissivo, e  Jasper Newell e Ezra Miller como o lindíssimo e assustador Kevin, criança e adolescente, respectivamente.

Importante ressaltar que trata-se de uma adaptação do "inadaptável" romance de Lionel Shriver, composto por cartas de Eva a Franklin que explicam o título. A crítica vem enfatizando um tom melodramático presente na película que não existe no livro. Devo dizer que, muito embora não tenha lido o romance, a escolha pela pungência, tanto no enquadramento, quando nos diálogos e na condução da ação, muito me agradou.

Um quantidade considerável de cenas tingidas de vermelho vivo -  de tomates a pichação - remetem à iminência do crime e, muitas delas, simbolicamente, sugerem um desfecho. Eva é sistematicamente perseguida, agredida e insultada por aqueles que a reconhecem como mãe do "monstro" e, resignada, lava as mãos sujas da tinta rubra que vandaliza a fachada de sua casa.

O que talvez palpitará no coração dos mais atentos, penso, será algo como: "estariam na narrativa as ações da mãe justificando as ações do filho, again, oh God?

Mais que isso, meus caros, só vendo!


No próximo post da série, um francês de arrepiar!

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Tento pensar para além do senso comum. Em alguns dias sou mais feliz nisso do que em outros. Quem eu sou não pode ser definido pelo que tenho feito apenas e, francamente, é o que menos importa. Entretanto, para quem quer saber sobre o meu trabalho, o caminho oficial é o http://lattes.cnpq.br/2396739928093839